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Autocomposição e a Relação Contratual em tempos de coronavírus

A pandemia gerada pelo novo coronavírus − Covid-19 − trouxe repercussões inimagináveis para todos, atingindo diretamente os contratos e demais negócios jurídicos. Antes da propagação do vírus no Brasil, muito já se falava a respeito das repercussões contratuais e seus reflexos na economia, pois não só nos momentos de crise, mas também depois que ela passar, enormes serão os desafios no enfrentamento das questões jurídicas.

Pois bem, o que devemos fazer com os contratos?

Inicialmente, antes de responder a pergunta, precisamos esclarecer o conceito de contrato. De acordo com o Prof. Marco Aurélio Bezzera de Melo contrato é:

"Negócio jurídico bilateral ou plurilateral de conteúdo patrimonial pelo qual as pessoas se obrigam com o objetivo de obterem segurança jurídica na aquisição de algum bem da vida ou a defenderem determinado interesse, observando a função social e econômica e preservando em todas as fases do pacto a probidade e a boa-fé" - Bezzera de Melo_Direito Civil – Contratos – Ed. Gen.
O art. 421 do Código Civil dispõe que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Há diversos princípios que regem o direito contratual que mitigam, mais ou menos, a liberdade contratual. Esta liberdade encontra, portanto, restrição no ordenamento jurídico.

Em relação a função social dos contratos, podemos afirmar que o contrato exerce uma função e apresenta um conteúdo constante, qual seja: o de ser o centro da vida dos negócios. É o instrumento prático que realiza o mister de harmonizar interesses não coincidentes. Defluindo da vontade das partes, ele só se aperfeiçoa quando, pela transigência de cada um, alcançam os contratantes um acordo satisfatório a ambos, preservando a probidade e boa-fé, pois o contrato se aperfeiçoa pela coincidência de duas ou mais manifestações unilaterais da vontade. Contudo, se estas se externarem livre e conscientemente e se foram obedecidas as prescrições legais, a lei as faz obrigatórias, impondo a reparação das perdas e danos para a hipótese de inadimplemento.

Porém, em decorrência de caso fortuito [evento totalmente imprevisível] ou em decorrência de força maior [evento previsível, mas inevitável], nos termos do art. 393 do Código Civil, não haverá perdas e danos para a hipótese de inadimplemento.

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
À vista disso, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes desses eventos se expressamente não se houver por eles responsabilizado, por força do contrato.

Noutro giro, tratando-se de relação de consumo, a revisão ou resolução contratual dispensa a imprevisibilidade, bastando um fato novo que cause a quebra da base objetiva do negócio, da proporcionalidade das prestações (art. 6º, inc. V, da Lei n. 8.078/1990).

Entretanto, como bem lembrado pela Dra. Roberta Coimbra Carvalheiro, analista de proteção e defesa do consumidor do Estado do Rio de Janeiro, em conversa informal no whatsapp, o Superior Tribunal de Justiça aplica o caso fortuito e a força maior como excludentes da responsabilidade civil do fornecedor também em relações de consumo.

Vejamos:

STJ. TERCEIRA TURMA. RESP 200100905522. REL. MIN. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO. DJ DATA:25/03/2002 PG:00278 LEXSTJ VOL.:00152 PG:00192 RJTAMG VOL.:00087 PG:00376 RSTJ VOL.:00158 PG:00287. Ação de indenização. Estacionamento. Chuva de granizo. Vagas cobertas e descobertas. Art. 1.277 do Código Civil. Código de Defesa do Consumidor. Precedente da Corte. 1. Como assentado em precedente da Corte, o "fato de o artigo 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil" (REsp nº 120.647-SP, Relator o Senhor Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 15/05/00). 2. Havendo vagas cobertas e descobertas é incabível a presunção de que o estacionamento seria feito em vaga coberta, ausente qualquer prova sobre o assunto. 3. Recurso especial conhecido e provido. (BRASIL, 2002, p. 1)
No julgado acima, o STJ admitiu o caso fortuito e a força maior como excludentes da responsabilidade do fornecedor.

Em outro julgado, também da Terceira Turma do STJ, mas, desta feita, da relatoria do Min. Ari Pargendler, é outro caso de aconlhimento do Judiciário da teoria que aceita o caso fotuito e força maior como excludentes da responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços:

STJ. TERCEIRA TURMA. RESP 200702410871, REL. MIN. ARI PARGENDLER. DJ DATA:01/02/2008 PG:00001. CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL. Nas relações de consumo, a ocorrência de força maior ou de caso fortuito exclui a responsabilidade do fornecedor de serviços. Recurso especial conhecido e provido. (BRASIL, 2008, p. 1)
Veja outro exemplo que o STJ admitiu caso fortuito e força maior como excludente da responsabilidade civil objetiva do fornecedor:

STJ. TERCEIRA TURMA. RESP 199700123740, REL. MIN. EDUARDO RIBEIRO, , DJ DATA:15/05/2000 PG:00156 LEXSTJ VOL.:00132 PG:00101 RSTJ VOL.:00132 PG:00311. Automóvel. Roubo ocorrido em posto de lavagem. Força maior. Isenção de responsabilidade. O fato de o artigo 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil. A inevitabilidade e não a imprevisibilidade é que efetivamente mais importa para caracterizar o fortuito. E aquela há de entender-se dentro de certa relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigir-se. (BRASIL, 2000, p.1)
Além disso, boa parte dos doutrinadores tem se mostrado favorável ao acolhimento do caso fortuito e força maior nas excludentes de responsabilidade do fornecedor. Desse modo, o rol do art. 14, § 3º, do CDC, não seria taxativo, e sim, exemplificativo, podendo outras excludentes ser invocadas pelo fornecedor para sua defesa.

Reconheço que parcela da doutrina advoga ser inaceitável a utilização das excludentes do caso fortuito e força maior na seara consumerista por entenderem estarem as referidas circunstâncias relacionadas ao instituto da culpa, o qual é incompatível com a responsabilidade objetiva do fornecedor, que independe de dolo ou culpa.

Porém, a pesquisa da jusrisprudência brasileira mostrou que a tendência dos tribunais, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), é pelo acolhimento da teoria que aceita o caso fortuito e força maior como excludentes da responsabilidade civil do fornecedor, inclusive nas relações de consumo.

Posto isso, passamos ao sistema multiportas.

O novo Código de Processo Civil trouxe medidas alternativas de resolução de conflitos dando ao ordenamento jurídico uma maior efetividade das normas constitucionais, principalmente ao direito à razoável duração do processo, determinando, categoricamente, no seu artigo 3º e respectivos parágrafos, que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

Esta nova regra processual vem assegurar um novo sistema chamado de multiportas na busca da pacificação dos conflitos a fim de que outros meios alternativos ao Poder Judiciário, como a mediação e a conciliação, sejam buscados pelos operadores do Direito, antes se instaurar uma demanda que verse sobre direitos transigíveis.

Os meios extraprocessuais que contribuem para a desjudicialização são, exemplificativamente, a mediação, a conciliação, a arbitragem e a negociação. Assim, a Justiça passa a apresentar muitas alternativas de acesso, diversas portas, diversas justiças, para uma só finalidade, a resolução dos conflitos com mais celeridade.

Iniludivelmente, o sistema multiportas terá importante destaque nos dias atuais, pois é um modelo alternativo para solução de conflitos que prevê a integração de diversas formas de resolução dos litígios, sendo judiciais ou extrajudiciais. Por meio dele, o Estado conduz os litigantes para a melhor opção de resolver o conflito, a melhor porta, dentre as já citadas. Assim, para cada tipo de conflito, deve ser adotada a via adequada à sua abordagem a partir da consideração de fatores como as intenções das partes, o perfil da controvérsia e as possibilidades inerentes a cada meio.

A Justiça Multiportas, aparece no Código de Processo Civil através de seus institutos mais conhecidos: a conciliação; a mediação e a arbitragem, mencionados anteriormente, deixando clara a sua intenção de incentivar uma nova postura de todos aqueles envolvidos com a tutela dos direitos, inclusive os próprios consumidores, dos quais é exigida a cooperação, como na audiência obrigatória de conciliação e mediação, prevista no Art. 334.

Assim, devem as partes prestigiar, sempre que possível, a autocomposição como forma de solucionar seus conflitos, uma vez que poderão, por meio de concessões mútuas, terem satisfeitas as suas vontades, não dependendo do Poder Judiciário para a resolução da questão conflituosa, situação que enseja em economia de recursos financeiros (custas judiciais, diligências, honorários advocatícios) e em economia de tempo, uma vez que não ficarão sujeitas à morosidade estatal para solucionar seus conflitos.

Conclui-se, portanto, que as partes devem buscar, dentro do esperado bom senso, soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade, pela boa razão e, principalmente, pela função social dos contratos.

Como dito, a função social é como uma forma limitadora da autonomia da vontade, impedindo que tal autonomia esteja em confronto com o interesse social. É uma forma de intervenção estatal na confecção e interpretação dos instrumentos contratuais, para que esses tenham além da função de promover os interesses dos contratantes, importância para toda a sociedade.

Devemos buscar, sempre que possível, preservar os contratos.

Por fim, não custa lembrar que: a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Assim, os operadores do direito devem se desarmar e abraçar essa nova realidade jurídica, sem receio de dificuldades ou de insucessos.

Devemos, portanto, auxiliar aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

É necessário, para o bem da coletividade, que as partes contratuais parem de se tratar como adversários e passem a ser comportar como parceiros de verdade, cooperando entre si para que se obtenha, em tempo razoável, solução justa e efetiva do contrato.

Nossa tarefa agora é garantir operatividade à política nacional de solução consensual dos conflitos.

Roga-se, pelo bom senso, boa-fé e solidariedade. Essas ferramentas serão essenciais, no presente e no futuro.

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